O rapaz gordo que voava

O rapaz não queria ser levado pelo vento e enquanto foi gordo permaneceu onde queria. Mas aos poucos, uma leveza inimaginável com cheiro de flores exóticas, que emergiam da terra molhada da Primavera que ali ia terminando, elevava os pés do rapaz. Mesmo assim não percebeu que começava a ficar em bicos de pés, e só mesmo quando bateu com a cabeça na Lua que crescia a olhos vistos, percebeu que voava.

O rapaz gordo que não se queria mexer, voava agora, indefinidamente no espaço, pelo meio de nuvens de fumo dos tubos de escape dos carros, nuvens carregadinhas de água que indiciavam precipitação e mesmo nuvens brancas solitárias no céu azul de um Verão que chegava sem sequer ter dado por isso.

Aos poucos e poucos começou a apreciar a capacidade de sobrevoar os mares e continentes, as cidades com casas caiadas e os rios de saudade que mal conseguia explicar, e até mesmo as praias com areias que queria partilhar no silêncio das ondas do mar.

Up 'n' down

Ferris wheel

Tell me how does it feel

To be so high

Looking down here

Num mundo onde não existiam casas, telefones nem moradas, o rapaz agora leve, imbuído de uma alma renovada pelas gotas refrescantes que brotavam em sentido contrário, talvez por teimosia, atreveu-se a procurar o elixir de uma vida térrea plena de sorrisos de anjos e de conchas do mar.

Procurou nos locais que considerava mais prováveis, mas os sorrisos de anjo não eram facilmente detectáveis, mesmo em praia de pedra onde se faz surf em ondas de cetim ou nas nuvens brancas onde se costumam sentar, quebrando acordes melodiosos e envolventes numa harpa de fios de cabelo finos.

O rapaz leve queria dançar, no escuro da noite, onde os loucos dançam freneticamente desligados do mundo doentio que apodrece aos olhos daqueles que assim o desejam. Mas o rapaz não via essa sujidade, e foi nas ruas sem papéis no chão que investigou as pedras da calçada, que fartas de serem pisadas, ainda assim lhe desejavam sorte.

O rapaz estava convencido que agora que voava conseguia o que queria, prepotente e confiante, não desmesuradamente. A frustração cedo surgiu, as voltas levavam todas aos mesmos sítios, o labirinto só tinha uma solução e não dependia dele a sua descoberta.

Round 'n' round

Carousel

Has got you under it's spell

Moving so fast

but Going nowhere

Desejava voltar a engordar para estagnar no chão criando raízes num solo sedento de água para dele renascer as sementes perdidas em estações esquecidas. Já não sabia o que procurava, o que desejava, o que lhe fazia feliz.

Com o sorriso dos anjos e das conchas estampadas numa cortina, queria abrir a janela para respirar o ar puro que não existe nas cidades. E ainda assim dava por si envolto em fumo, e dançando freneticamente, desconhecia que a sua busca poderia estar por trás das luzes de discoteca. Algures, mesmo ali perto estava o sorriso.

E ele ia para o outro lado do oceano, o rapaz sabia e sentiu-se impotente por ter paredes de água e de medo que o impediam de apanhar as conchas do mar que tanto ansiava.

Queria juntá-las e colocá-las numa prateleira de areia e de luz junto à rede presa a duas palmeiras que servia de aconchego nas tardes e noites quentes de Inverno.

Is it lonely

Lonely

Lonely

Lonely


E a terra chorava, e as lágrimas que escorriam em sentido contrário humedeciam os olhos e os cabelos do rapaz que começara a ficar gordo novamente.

He’s ok today

somewhere inside him

that's where he’ll find him

safe…

Norah Jones - Carnival Town

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