terça-feira, janeiro 22, 2008

Poesia, precisa-se.


"O poema não tem mais que o som do seu sentido, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma, poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não se escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido e memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu olhar de doce menina, silêncio ao domingo entre as conversas silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem. O poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, o poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo. o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo o que quero aprender se o que quero aprender é tudo, é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento, não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são bibliotecas bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema porque a palavra poema é uma palavra, o poema é a carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre os telhados na hora em que todos dormem, é a última lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança. O poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos, tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos, o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido."



(obrigado por me teres apresentado esta pérola)







José Luís Peixoto in "Criança em Ruínas"

2 comentários:

Miguel Noite disse...

Acredita que de onde veio essa pérola, há muitas mais!

José Luis Peixoto é o mestre, tenho dito! E por isso recebe especial destaque tanto no meu actual como no meu antigo blog!

Adoro esta pérola também:

"Vejo o teu rosto parado numa fotografia e a memória do que guardo de ti é tão diferente da realidade assustadora das fotografias. Mas não vou mentir. Estou cansado de mentir. A minha vida também és tu, o teu rosto parado na minha memória. A minha vida és tu e todas as mãos que me seguraram e me quiseram, todos os lábios que me beijaram, todas as línguas que me desenharam figuras na pele, todos os dentes que me morderam, todas as vozes que disseram amo-te e me fizeram acreditar nisso. Não quero mentir mais. Estou cansado de mentir. Não és quase nada, mas não quero e não vou fingir quer nunca exististe."

José Luís Peixoto in " a criança em ruínas"

Um dia hei de colocar no meu blog! No momento certo :)
Não me vou alongar muito mais! José Luis Peixoto tem muito que se diga.

Abraço,
Miguel Noite

Merchi disse...

José Luis Peixoto ... vale muito a pena perder uns momentos e deixar-se levar pela sua escrita!